Juros, Fé e Capitalismo: A História Conturbada da Usura nas Religiões

Por Edison Veiga


Dinheiro e fé caminham lado a lado há séculos — nem sempre em harmonia.

Desde os primórdios do cristianismo, a cobrança de juros — ou a ideia de lucrar com o dinheiro emprestado — tem sido tema de debate teológico e moral. Com a ascensão do capitalismo, as doutrinas religiosas precisaram se adaptar, moldando interpretações e flexibilizando conceitos para acompanhar as mudanças nas relações econômicas.

O que são juros e usura?

Segundo o Dicionário Caldas Aulete, juro é o valor adicional pago por um empréstimo ou compra a prazo — ou seja, a remuneração pelo capital investido.

usura tem um significado mais carregado: além de ser sinônimo de juro, também representa “juros abusivos”, “agiotagem”, “cobiça” e “avareza” — expressões que carregam forte carga moral e religiosa. Na tradição cristã, usura passou a ser sinônimo de pecado.


A visão da Igreja Católica: de pecado à parceria

O sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, afirma que é essencial distinguir entre juros e usura. Segundo ele, o problema está na exploração do necessitado: cobrar juros excessivos de quem precisa de ajuda é considerado pecado por falta de solidariedade.

Historicamente, instituições como os Montes da Piedade, fundados por franciscanos, buscavam oferecer empréstimos com juros baixos ou inexistentes para libertar os pobres das mãos dos agiotas.

Para o sociólogo, a Igreja Católica não mudou sua visão sobre a usura — o que mudou foi a estrutura econômica da sociedade, que tornou os juros uma prática comum e sistematizada. A condenação da usura, entretanto, ainda é válida quando há exploração.


O contraste com o Islã

Diferente do cristianismo, o islamismo proíbe qualquer cobrança de juros. A sharia (lei islâmica) considera qualquer juro excessivo por natureza. Assim, os bancos islâmicos recorrem a modelos alternativos de financiamento, evitando completamente o sistema tradicional de juros.


O que diz a Bíblia sobre juros?

As escrituras bíblicas são categóricas ao condenar a prática de cobrar juros, especialmente quando o empréstimo envolve o auxílio a um irmão necessitado. Textos como Levítico, Êxodo, Deuteronômio e Ezequiel estabelecem que não se deve emprestar a juros.

O Salmo 15, por exemplo, elogia aquele que “não emprestou seu dinheiro com usura”, indicando que a integridade moral está ligada à generosidade.

Para o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, a cobrança de juros sempre foi vista como ganância. Domingos Zamagna, filósofo e teólogo, recorda a definição de Santo Ambrósio, que via a usura como “receber mais do que se deu”.


Quando a teologia encontrou o capitalismo

Com o avanço da sociedade, a estrutura financeira se sofisticou, e os juros tornaram-se instrumento indispensável da economia. Isso obrigou uma revisão teológica ao longo dos séculos.

Na Antiguidade, um empréstimo não pago podia levar à escravidão do devedor. A usura, nesse contexto, era sinônimo de risco de vida e exploração brutal. A Bíblia buscava proteger o mais fraco.

Durante a Idade Média, teólogos cristãos como Tomás de Aquino debatiam a justiça das trocas econômicas. Aquino permitia que comerciantes tivessem lucro para sustento próprio, mas via a usura como venda de algo inexistente: o tempo — um dom de Deus.

Os concílios eclesiásticos, como o Segundo e o Terceiro Concílio de Latrão (séculos XII), condenaram a prática como forma de roubo e rapina. Mesmo assim, na prática, a população pobre passou a recorrer a empréstimos para sobreviver, e a Igreja precisou lidar com a realidade.


A virada protestante

Com a Reforma, Martinho Lutero condenava a usura com base na literalidade bíblica. Já João Calvino introduziu uma nova interpretação: a proibição de juros não era absoluta, mas condenava apenas a exploração injusta.

Calvino permitia empréstimos com juros desde que não fossem abusivos, criando uma distinção ética entre o lucro legítimo e o ganho desmedido. Isso foi essencial para o desenvolvimento do capitalismo moderno.


O século XVII em diante: os juros vencem

Com o Iluminismo e o desenvolvimento dos mercados financeiros, a prática dos juros foi normalizada. O discurso religioso contra a usura perdeu força.

Mesmo papa João Paulo II tentou resgatar os princípios bíblicos ao lembrar os jubileus, quando dívidas eram perdoadas, mas seu apelo teve pouco efeito diante do poder dos conglomerados financeiros globais.

Papa Francisco também já pediu o perdão das dívidas de países pobres — mas, como observa Zamagna, tais pedidos não encontram eco no atual sistema capitalista.


A redefinição de usura: uma nova moral?

A partir do século XVIII, a Igreja passou a diferenciar juros justos de juros abusivos. O entendimento moderno é que juros podem ser vistos como o aluguel do capital. Assim como se aluga um imóvel, também se pode “alugar” dinheiro com remuneração proporcional.

Para o teólogo Gutierres Fernandes Siqueira, é importante lembrar que o conceito de empréstimo mudou: hoje, não se empresta apenas por necessidade, mas também para investir, empreender ou adquirir bens — o que permite um novo olhar moral sobre os juros.

Conclusão

 relação entre fé e finanças é antiga, complexa e cheia de contradições. O que antes era pecado absoluto, hoje é parte integrante da economia global. Mas os fundamentos morais continuam relevantes: a distinção entre ajuda solidária e exploração, entre lucro legítimo e ganância, permanece viva no debate entre teologia, ética e economia.

Artigo publicado originalmente na BBC News Brasil


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